Um painel com antigos recortes de jornal que mostram a gloriosa trajetória de um craque do futebol brasileiro. A câmera vai se afastando lentamente até que vemos Heleno de Freitas – interpretado por Rodrigo Santoro – rasgar e comer pedaços do papel surrado pelo tempo.
Essa é a primeira cena do filme Heleno, o Príncipe Maldito, do diretor José Henrique Fonseca, que estreia nesta sexta (30/03) nos cinemas de todo o País. O longa começa pelo triste fim do astro do Botafogo, da Seleção Brasileira, do Boca Juniors e de outros grandes clubes. Heleno está internado num sanatório da cidade de Barbacena (MG), onde faleceu em 1959, aos 39 anos, vítima de sífilis.
Baseado no livro Nunca Houve um Homem como Heleno, do jornalista Marcos Eduardo Neves, que acaba de chegar às livrarias em segunda edição, o filme apresenta uma narrativa que alterna as melhores passagens da vida do jogador com seus últimos dias, de modo a eleger as suas lembranças como fio condutor da trama.
O espectador é apresentado, então, ao Rio de Janeiro da década de 1940, com bela fotografia em preto e branco. À diferença do livro – que procura uma abordagem abrangente –, o longa opta pela vida pessoal de Heleno, destacando o lado boêmio, suas aventuras amorosas, o casamento com Hilma (Alinne Moraes), jovem da alta sociedade carioca, e sua paixão por uma cantora de cabaré (Angie Cepeda). A recorrência de tomadas em close é bastante apropriada a esse recorte.
Assim, o que se assiste é a trajetória de um craque temperamental e galã, apelidado de “Gilda” pelas torcidas rivais (em referência ao filme estrelado por Rita Hayworth em 1946), que combinava as obrigações profissionais de atleta com excessos de uma vida glamorosa, em que o vício em cigarros, lança-perfume e álcool, aliado a um apetite voraz por mulheres, levam a vida do protagonista ao desfecho previamente anunciado.
Há quem sinta a falta de mais cenas de Heleno em ação dentro de campo. O fato pode ser explicado pela escassez de registros visuais dos jogos da época. Mais do que isso, parece ser fruto de uma escolha consciente de quem procura enquadrar o homem que veste a camisa e calça as chuteiras para defender seu time.
O maior problema dessa opção, porém, foi traçar um Heleno fora do tempo histórico, apesar do esforço da produção para contextualizar o enredo. A trajetória do craque-doutor – nascido numa família tradicional de São João Nepomuceno (MG) e formado em Direito – se dá no momento em que o esporte abre as suas portas para os marginalizados sociais. Instituído oficialmente em 1937, o regime profissional garante direitos trabalhistas aos jogadores. O futebol está deixando de ser um passa-tempo aristocrático. Heleno zomba de tudo isso, por exemplo, ao queimar dinheiro na frente de seus companheiros mais humildes. Mas isso passa despercebido ao filme.
Na verdade, o longa falha ao avaliar o comportamento esnobe do personagem. Seria o mesmo uma questão de temperamento difícil agravado pela sífilis? Certamente, mas não só isso. No final, o “perfeccionismo” do atacante e o velho amor à camisa justificam todos os excessos. E o filme acaba flertando sem perceber com a moral do tempo do amadorismo, do qual Heleno pode ser visto como tardio e tortuoso representante.
Felipe Dias Carrilho é historiador e autor do livro Futebol, uma janela para o Brasil – As relações entre o futebol e a sociedade brasileira.
* Texto originalmente publicado no Diário do Comércio