Comer um prato típico do Haiti no Brasil ou torcer para um time de haitianos no Campeonato Carioca parecia improvável em 2004, quando tropas brasileiras chegaram a Porto Príncipe para liderar a Missão de paz da ONU. Treze anos depois, as relações bilaterais vão além do apoio militar.
Robert Montinard, 42 anos, chegou ao Rio de Janeiro com a família no Natal de 2010, meses após ver sua casa desabar no terremoto que sacudiu a capital haitiana em janeiro daquele ano, deixando cerca de 250 mil mortos e ao menos 1,5 milhão de desabrigados.
“É mais fácil se adaptar no Brasil do que na Europa, nos Estados Unidos. Temos uma cultura e uma história parecidas, com o passado de escravidão, o futebol, o carnaval. Parece Porto Príncipe, o haitiano se sente bem aqui”, compara Montinard, que prefere ser chamado de Bob.
Ele e a mulher, a francesa Mélanie, 34 anos, conseguiram salvar o filho, Bimba, de 8, dos escombros. Lula, de 9, fruto de um relacionamento anterior de Bob, passou três dias soterrado na casa da mãe haitiana até ser salvo e hoje vive com o pai.
Leia mais
Um desastre humanitário no centro de São Paulo
A tragédia deixou sequelas físicas – Bob quebrou o pé esquerdo e perdeu parte dos movimentos – e psicológicas, que levaram a família a deixar o país. “Operei o pé na França e lá o médico me falou que a melhor fisioterapia do mundo era a do Brasil. No Haiti não tem fisioterapia, então eu vim”, conta Bob.
Sete anos depois, ele recuperou os movimentos, aprendeu português e mora com a família em um apartamento na Glória, zona sul do Rio.
Sem esquecer os desafios de se chegar a um lugar desconhecido, Bob criou com Mélanie o projeto Mawon, que atende haitianos recém-chegados, e migrantes de qualquer lugar do mundo ou brasileiros de outros estados que precisem de ajuda – de informações sobre como tirar documentos ou conseguir atendimento médico a onde obter cestas básicas.
O projeto quer ir além da assistência e integrar os migrantes à sociedade através da cultura. “Sonhamos com um mundo sem fronteiras”, diz Bob.
Para encurtar distâncias, ele faz palestras sobre a história de seu país, promove oficinas de música e dança caribenha em escolas públicas, participa de feiras gastronômicas e visita unidades de saúde para explicar aos funcionários as palavras mais usadas pelos haitianos que buscam atendimento médico.
“O grande barato da imigração é como ela pode contribuir para a sociedade brasileira. Há uma nova leva de imigrantes trazendo uma cultura nova que sem dúvida vai enriquecer ainda mais a brasileira”, explicou à AFP o professor de Relações Internacionais da UERJ Maurício Santoro.
Brasileiros no Haiti
Bob e sua família não foram os únicos a migrar para o Brasil após o terremoto de 2010. Segundo o Ministério das Relações Exteriores (MRE), foram concedidos 49.723 vistos humanitários pela embaixada brasileira em Porto Príncipe de 2012 ao final de 2016.
A validade desses vistos expira este mês, coincidindo com o fim da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), mas o MRE informou à AFP que “a intenção do governo brasileiro é de dar continuidade à atuação brasileira de caráter humanitário no Haiti”.
Ainda que em proporção menor, brasileiros também migraram para o país caribenho.
Desde 2006, cerca de 70 militantes do Movimento dos Sem Terra (MST) cooperaram com haitianos na área rural do país, com projetos variados, da produção de sementes ao reflorestamento, da canalização de água à reconstrução de um centro agroecológico.
“Hoje temos cinco militantes no Haiti. As principais atividades seguem sendo a solidariedade aos movimentos nos temas da formação com jovens e mulheres”, resumiu o MST à AFP.
A empresa social Viva Rio, no Haiti desde 2006, tampouco planeja partir. Cinquenta e seis funcionários, três deles brasileiros, gerenciam “projetos que passaram por muita dificuldade, mas que agora estão florescendo”, diz seu diretor-executivo, Rubem César Fernandes.
Entre eles destaca-se o “Pérolas Negras”, escolinha de futebol nos arredores de Porto Príncipe que recebe cerca de 150 meninos e meninas a partir de 11 anos.
Aos 16 anos, os mais talentosos vêm treinar no Brasil e podem integrar o time profissional de mesmo nome que disputa a série C do Campeonato Carioca.
“O futebol gera um ambiente mais livre em relação aos imigrantes do que a sociedade em geral”, diz Fernandes, que acredita que essa abordagem cultural através do futebol – uma paixão comum aos dois povos – favorece as relações bilaterais.
Para Santoro, a troca entre brasileiros e haitianos é extremamente positiva. “A saída da Minustah não vai extinguir a aproximação dos dois países. Parte das relações internacionais brasileiras é feita pela sociedade civil, que muitas vezes é mais dinâmica e criativa do que a nossa política externa”.
No que depender de haitianos e brasileiros, este intercâmbio só tende a crescer.
*Leia mais na AFP