Quilombolas resistem e não desapropriam terras que ocupam há mais de um século

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Moradores da região do Baixo São Francisco, em Sergipe, estão ameaçados por uma decisão judicial que designa a desapropriação; mesmo local aguarda regularização desde 2012

Segunda-feira, dia 26 de maio de 2014. Entre a paisagem rústica da região do BaixoMoradores da região do Baixo São Francisco, em Sergipe, estão ameaçados por uma decisão judicial que designa a desapropriação; mesmo local aguarda regularização desde 2012 São Francisco sergipano, os arrozeiros e as criações de peixe, homens e mulheres, em círculo, aglomeravam-se inquietos na sede da comunidade quilombola da Resina. Motivo? Uma decisão judicial de reintegração de posse de uma área de mais de 70 hectares, onde mais de 40 famílias sobrevivem e cultivam a sua vida.

Em minúcias, a decisão proferida pelo juiz federal, Ronivol de Aragão, no dia 29 de abril, demanda que as mais de 40 famílias saiam da sede da comunidade quilombola da Resina para que a então proprietária, Ana Catarina Santos Martins, tome posse. O prazo final para o cumprimento da sentença terminou ontem (27), mas a comunidade resiste e permanece no local.

Representante do INCRA, Antonio Oliveira dos Santos, também membro da Comissão designada para emitir o relatório para a Justiça Federal, e o ouvidor agrário Paulo Chagas, estiveram no local nas primeiras horas da manhã do dia 26, para ler a decisão judicial para a comunidade.


Os quilombolas ouviram a decisão e se manifestaram pela resistência e permanência nas terras, enquanto não houvesse a presença de um oficial de Justiça para informá-los sobre o processo de desocupação.

Nesta quarta-feira (28), algumas lideranças da comunidade da Resina e a articuladora do Movimento Nacional de Direitos Humanos, em Sergipe (MNDH-SE), Lidia Anjos, estarão em reunião com os representantes do INCRA-SE para avaliar quais serão os encaminhamentos para evitar um confronto emergente, visto que um pedido de titularização do local já foi emitido pelos quilombolas nos órgãos competentes.

“Precisamos da titulação do nosso território o quanto antes. Não podemos esperar nem mais um dia para ter a regulamentação daquilo que é nosso, de fato e de direito”, afirma Clesivaldo, uma das lideranças quilombolas.

Histórico

O impasse pelas terras é antigo. Em 2010, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação contra a construtora Norcon, denunciada por comprar terras da União, na região que envolve a Resina, além de ameaçar diversas comunidades na região.

A partir deste processo, o mesmo juiz, Dr. Ronivol de Aragão, deu ganho de causa a favor do MPF, reconhecendo que aquelas áreas (cerca de 800 hectares) pertenciam à União. Ao mesmo tempo em que houve esse reconhecimento, outro processo estava sendo concluído.

Um laudo feito pela Fundação Palmares – órgão responsável por averiguar as origens das terras remanescentes de quilombos – constatou que os mesmos 800 hectares são ocupados por comunidades de origem quilombola há mais de cem anos. A partir de então a instituição encaminhou para os órgãos responsáveis um pedido de titularização dessas terras para que fossem reconhecidas como de origem quilombola.

Contudo, apesar de diversos esforços dessas comunidades, desde julho de 2012, esse processo ainda está esperando pela regulamentação. Essa morosidade ensejou uma ocupação dos moradores da Resina no início de maio deste ano, na sede do INCRA, em Aracaju. A principal pauta era, justamente, a cobrança da titularização.

Entretanto, durante o processo que envolveu o MPF e a Norcon, em 2010, houve um pedaço de terra de 70 hectares, que não pertencia à Construtora e que está sendo reivindicada agora, pela autora do processo que culminou com a decisão de desapropriação.

O que complica ainda mais a situação é que o local reivindicado representa o coração do sistema produtivo da comunidade, onde se concentra o plantio do arroz e a criação dos peixes. A população estima mais de 50 mil reais de prejuízo se a desapropriação realmente vir a ocorrer.

“Minha vida está aqui, o sustento da minha família está aqui. É certo deixar de dar para 42 famílias, isso é a justiça?”, indaga Iraneide Machado, de 37 anos e mãe de sete filhos. Da mesma forma D. Marília dos Santos, que há 48 anos mora na Resina, e viu os seus 15 filhos nascerem e sobreviverem desta terra não aceita a decisão. “Vi os meus filhos se criarem aqui, aqui plantamos, cuidamos e colhemos o que a terra nos dá, não podemos aceitar essa situação, onde vamos plantar, onde vamos guardar o nosso arroz?”, pergunta.

Titulação

O próprio INCRA -SE, através de laudos e estudos,  já reconheceu toda a área – incluindo os 70 hectares, que são o motivo do imbróglio jurídico – como terra da União, restando, de fato, somente a titulação deste território.

Durante essa semana, os representantes do INCRA ficaram responsáveis, inclusive, de intermediar essa situação junto a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), além das instâncias do INCRA, em Brasília (DF), para apressar a titulação dessas terras de origem quilombolas.

Possível confronto diário

Com a decisão judicial, as terras da Resina são, praticamente, divididas ao meio. O coração produtivo da comunidade ficará com a autora da ação, enquanto o restante do terreno permanecerá sob posse da comunidade da Resina, ou seja, as duas partes terão que conviver, diariamente.

Para exemplificar a situação; para que a autora do processo chegue até a área que ela pleiteia sendo sua, ela terá que passar por terras quilombolas, não existe nenhum outro acesso por terra, somente pelo rio.


Para uma das lideranças da comunidade da Resina, Clesivaldo, a divisão desta área gerará um conflito diário. “Como vamos conviver juntos em um mesmo espaço? Essa decisão judicial irá criar um confronto enorme entre a gente. Já se sabe inclusive que os fazendeiros da região, quando essa terra for desapropriada, farão um grande churrasco de comemoração do nosso despejo, você tem noção de onde isso pode chegar?”, arremata Clesivaldo.