As cotas nas universidades e as Brumas do Avalon

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O interessante artigo do professor Ennes, publicado no site da Universidade Federal de Sergipe, “Injusto para poucos, mais justo para muitos”, defendendo a política de cotas, nos motivou a escrever sobre o tema.

Comecemos pelo último parágrafo do supracitado, onde é dito “É necessário dizer para esses jovens e para seus pais que logo estarão na universidade. Se não passaram agora passarão no próximo, é uma questão de tempo.”

A leitura dessa sentença, deixa transparecer a busca por um lenitivo, alento, bálsamo dirigido aos jovens que não obstante sua pontuação elevada, ficaram de fora da universidade pública e serão substituídos por outros de pontuação menor em função da política de cotas implantada pela UFS.

Ressalte-se que ficam de fora, na sua grande maioria, os filhos da burguesia brasileira e da denominada classe média, esta que sob incomensurável esforço, navegando contra seguidas políticas econômicas, consegue manter seus filhos nas escolas privadas de nível médio, mas que, infelizmente, em oposição ao que defende Chico Buarque: “Lutar, quando é fácil ceder”, preferira ceder a lutar.

Tendo concordância com o sentido maior do artigo, divergimos pontualmente das mensagens aqui destacadas entre aspas, por uma questão simples: o vestibular nas universidades públicas brasileiras existe, não objetivamente como balizador do conhecimento, mas precipuamente como anteparo à oceânica falta de vagas.

É cediço que desde há muito as políticas governamentais anteriores ao governo Lula vinham privatizando ostensivamente o ensino superior. Essa tendência perde força no atual governo, embora ainda estando muito longe de reverter o quadro. Pelos dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio (PNAD), em 2008, 76,3% dos estudantes do ensino superior se encontram matriculados nas escolas privadas, 0,4 pontos percentuais acima do valor de 2007.

Em síntese, não existem vagas nas universidades públicas para todos os jovens que estão preparados, então, diferentemente do alento que o artigo de Ennes busca transmitir aos que ficaram de fora, nós diríamos a esses jovens: ou mudamos a realidade atual de desigualdade e exclusão que corroi o seio da nação brasileira ou vocês podem verdadeiramente ser excluídos, definitivamente, do ensino publico superior, sim!

Apesar de dura, essa é a nova realidade para os “abastados” filhos do ensino privado. Todo ano, estudantes egressos do ensino pago se habilitam ao vestibular. Com o agravante de que agora as escolas privadas oferecem bolsas também para aqueles cotistas que ficam na excedência.

A demanda por parte dos que estudam no ensino privado e buscam as universidades públicas só tende a crescer. É imperativo, portanto, que se aumente exponencialmente o número de vagas nas universidades públicas, estaduais e federais, garantindo-se a qualidade. Do contrário, muitos ficarão excluídos; e se quem ficou de fora da faculdade esse ano não fizer um hercúleo esforço, ficará de fora no ano que vem.

Uma outra frase do professor denota certo mal estar que parece assolar o mesmo pelo fato de defender as cotas: “mas digo que não há razão para me sentir feliz e satisfeito com os resultados do vestibular.” Essa expressão traduz, na medida exata, a força coercitiva do poder, da inversão absoluta do real e sua expressão também invertida na consciência. A inversão nas consciências do real, como função de um real invertido, cria verdadeira Bruma do Avalon, em função da qual o real invertido é percebido como real concreto.

Essa inversão incondicional da realidade faz com que se tenha de pedir desculpas, por criar mecanismos, a exemplo das cotas, que buscam devolver às maiorias o que de direito sempre lhes pertenceu. Por serem elas, as maiorias, que com o seu trabalho constroi e edifica o real.

Penso que as cotas devem deveras ser motivo de regozijo, por “romper a incabível prisão”, iniciando um processo de inclusão de setores que estão historicamente alijados. Começa-se, tal sorte, a mudar um horizonte no qual alguns já nasciam sob a imputação da pobreza e da miséria perpétuas. Então a partir de um novo real, tenhamos quebrado os grilhões que acorrentam inclusive as consciências!

O que causa impertigo nos que até então estavam incluídos é que a exclusão estava absolutamente de um só lado. Com as cotas, a falta de vagas é distribuída entre todos. Preteritamente, os privilegiados dividiam entre si apenas as vagas, disso não reclamavam, não faziam muxoxo, nem resmoneavam por estarem dividindo também a escassez das mesmas.

A indignação de alguns advém, mesmo, da naturalização de aspectos dos direitos e saberes. Essa é expressão da ideologia; sua inversão na consciência do mundo real advém do real invertido, em função do qual certos indivíduos acreditam ser os escolhidos, que suas vitórias, dentre essas passar no vestibular, são fruto apenas dos seus esforços individuais; desconhecendo ou não reconhecendo a vida em toda sua riqueza e plenitude, que deverá ser evidenciada como resultado de uma gigantesca construção social coletiva.

A doença da exacerbação do individualismo atinge não só os bem aquinhoados; cidadãos originários das classes populares também sofrem de igual moléstia, como precisamente identificou Florestan Fernandes. Este sociólogo percebeu que alguns negros ao conseguirem ascender socialmente buscavam formas de se descolar das suas origens, atribuindo a sua ascensão apenas ao esforço individual.

Acredita-se, ora, ser imprescindível elucidar o constructo social. Nesse caso a introdução das disciplinas de filosofia e sociologia no ensino médio poderá contribuir para bem se reconstruir o conceito de herança coletiva e construção social.

As cotas, por sua vez, também poderão contribuir de forma muita explícita para retirar das “Brumas do Avalon” as nuances que cercam as denominadas vitórias pessoais. A possibilidade de ascensão social pelas cotas deverá colocar sobre os ombros dos cotistas a responsabilidade de agir, no sentido de ampliar socialmente os espaços para que outros como eles possam sonhar “mais um sonho impossível”, vendo nascer um futuro diferente da exclusão e “uma flor brotar do impossível chão” (Chico Buarque).

Currículo

Frederico L. Romão – Dr. em Ciências Sociais, Prof. do Departamento de Serviço Social/UFS – fredericoromao@uol.com.br

Luciane P. C. Romão – Dra em Química, Profa do Departamento de Química, do Núcleo de Pós-Graduação em Química/UFS – São Cristóvão luciane@ufs.br