A lógica do encantamento (edição 11, julho de 2003)
Seis anos após sua morte, os ensinamentos de Paulo Freire, de que a educação é instrumento de conscientização e libertação, continuam influenciando pessoas em todo o mundo
Por Glauco Faria e Nicolau Soares
Marcos Pereira Santos tem 20 anos e é um dos quatro educadores que participam do Centro de Educação e Organização Popular (Ceop) localizado na favela do Jardim São Remo, Zona Oeste de São Paulo. Em parceria com o Mova, programa de alfabetização de jovens e adultos da prefeitura de São Paulo, o projeto atende a oitenta pessoas da comunidade, que aprendem não só a juntar e rejuntar as letras do alfabeto, mas também, a partir daí, a interpretar e refletir sobre a realidade em que vivem.
O jovem Marcos ganha ajuda de custo de 400 reais para dar aulas de segunda a quinta-feira, tendo as sextas reservadas para o curso de formação pedagógica. Recrutado entre os moradores da favela, estranhou de início dar aulas para pessoas mais velhas,com as quais convivia tão de perto. “No começo, eles se perguntavam ‘o que esse moleque que vejo todo dia na rua pode me ensinar?‘ “. Mas a desconfiança inicial não o intimidou.
Ele já tinha superado um obstáculo mais difícil: alfabetizar os próprios pais. “Foi difícil no começo, ficava intimidado com eles. Depois que deu certo, ganhei muito mais segurança”, conta o professor. No decorrer do curso, os educandos foram adquirindo confiança em Marcos, que em nenhum momento adotou postura professoral, esteriotipada. “As pessoas têm uma visão do professor como orador, que fala o tempo todo, mas a gente busca dialogar com os alunos. Não são só eles que aprendem, quem dá aula aprende muita coisa também”, conta.
Assim como Marcos, muitos educadores no Brasil trazem no seu modo de agir mais que a simples transmissão de conhecimentos. Muitas vezes sem saber, trazem a marca de um dos maiores pensadores do Brasil, que analisou e difundiu a educação como instrumento de conscientização e libertação. No último 2 de maio, foram completados seis anos da morte de Paulo Freire, que deixa um legado permanente para todos aqueles que se preocupam em ensinar e aprender.
Não se trata de nenhum exagero. Em sua morte, mais de 600 mensagens de condolências foram enviadas à família e ao instituto que leva seu nome, parte vinda de professores de aproximadamente 150 universidades de todo o mundo. Seu nome serve para batizar institutos de educação nos EUA, Canadá, Dinamarca, Suíça, e em inúmeros países da África. Recebeu, entre outros, os prêmios Rei Balduíno para o Desenvolvimento (Bélgica, 1980), Unesco e Educação para a Paz (1986) e Andrés Bello, da Organização dos Estados Americanos, como Educador do Continente (1992). Mas o que esse pernambucano, nascido no Recife, em 1921, construiu ao longo de seus 75 anos que pudesse provocar tanta admiração por onde quer que sua obra chegasse?
Passagem contada pelo professor da PUC-SP Mário Sérgio Cortella elucida um pouco tamanho prestígio. Lembra que, em março de 1986, numa aula inaugural da pós-graduação em Educação da PUC, resolveu provocar seu mestre. Perguntou se ele se considerava um “clássico”, citando a célebre pérola de Millôr Fernandes, que diz que “clássico é um escritor que não se contentou em chatear apenas os contemporâneos”. Sem titubear, Freire respondeu: “Sou um clássico, sim. Não porque subjetiva e presunçosamente deste modo me considere, mas, porque como clássico sou considerado por todas aquelas e todos aqueles que encontram em minha obra um instrumento para enfrentar um clássico problema: a existência de opressores e oprimidos. Por isso, enquanto esse problema persistir, quero continuar chateando, incomodando e fustigando os que, contemporâneos meus ou não, defendam a permanência das desigualdades”.
E ele continua incomodando. “Paulo Freire trouxe uma nova forma de ver a educação, ao criticar o que chamava de educação bancária, na qual um professor autoritário deposita o conhecimento no aluno”, explica Ceres Torres, primeira vice-presidente da secretaria regional do Rio Grande do Sul da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes). “Ele traz a possibilidade de que todos possam aprender, construindo juntos o conhecimento. Democratiza as relações entre professor e aluno e coloca o pólo do processo educativo na troca, no processo dialógico, como chama, e não no professor autoritário de antes.”
O professor da Faculdade de Educação da USP Moacir Gadotti, companheiro de Freire e um dos fundadores do instituto que leva seu nome, dá outra dimensão à importância do mestre. “Paulo Freire marcou por sua vida. Não apenas pela grandeza de sua obra, mas principalmente por sua causa, que é a causa do oprimido. Ele a levantou e tornou-se um símbolo da luta do oprimido”, esclarece. “A opressão em sua obra vai além daquela caracterizada e estudada por Marx no conceito de luta de classes. Pode ocorrer também em situações que vão além das condições materiais, tanto que os oprimidos também podem ser opressores em determinadas situações. Existe opressão entre gêneros e raças”, sustenta. Segundo Gadotti, até a violência na escola pode ser entendida como uma reação a essa opressão. O jovem agride porque antes é vítima, quando não é atendido em um posto de saúde ou não acha na escola um ambiente acolhedor. “Por fim, acha visibilidade ao usar uma arma”, acredita.
Paulo Freire dedicou toda a sua vida à educação. Deixou um legado de idéias, filosofias e inspiração que está entre os mais reconhecidos do mundo. Um dos seus filhos mais nobres, o Mova, que surgiu durante o período como secretário de Educação do município de São Paulo, de 1989 a 1991, espalhou-se por todo o país. O projeto, em certa medida, é semelhante à experiência pioneira de Freire em Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963, onde 330 trabalhadores rurais foram alfabetizados partindo da própria realidade em que viviam. Começava a se desenvolver aí um método baseado no diálogo como recurso principal não apenas para alfabetizar, mas para despertar na pessoa a chamada consciência crítica.
Claro que os militares que tomaram o poder em 1964 não viam com nenhuma simpatia o método, tomado como subversivo. Após ser preso, Freire foi exilado no Chile, onde desenvolveu programas de educação de adultos no Instituto Chileno de Reforma Agrária, escrevendo no país aquele que viria a ser seu principal livro, Pedagogia do Oprimido, norte de toda a obra posterior. Lecionou na Universidade de Harvard, Estados Unidos, no ano de 1969, e em seguida passou a trabalhar co- mo consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, Suíça. Ficou lá por dez anos, durantes os quais deu consultoria educacional a vários governos do Terceiro Mundo, principalmente da África.
Filho caçula do educador, Lutgardes Costa Freire passou todos os anos do exílio ao lado do pai. Cientista social, hoje é um dos coordenadores do Instituto Paulo Freire. Ele se lembra do período no Chile, durante o qual foi escrito Pedagogia do Oprimido. “Meu pai conviveu muito com camponeses e operários antes de escrever o livro, conhecia bem a realidade de que estava falando”, sustenta. “Sempre foi uma pessoa muito acessível, não tinha problemas em arranjar tempo para atender um estudante, por exemplo”, completa.
Retornou ao Brasil em 1980 para, em suas palavras, “reaprender” o seu país. Lecionou na Universidade de Campinas (Unicamp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989, assumiu o cargo de secretário de Educação durante a gestão de Luíza Erundina, do PT, partido do qual foi membro fundador.
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O pensador do século XXI (edição 50, maio de 2007)
A teoria de conhecimento desenvolvida por Paulo Freire continua sendo referência nos mais diversos países e influencia quase todas as ciências humanas, mesmo dez anos após sua morte
Por Glauco Faria e Nicolau Soares
O educador Carlos Alberto Torres era um estudante de graduação da Universidade da Patagônia pouco antes do golpe militar argentino, em 24 de março de 1976. À época, finalizava um livro sobre Paulo Freire e, munido de três cópias datilografadas, pegou um avião para Buenos Aires e entregou a obra para o editor Júlio Barreiro, que havia se comprometido a publicá-la.
Chegando lá, Júlio o cumprimentou em seu escritório com afeição, pegou o material e disse a Torres: “Vou lê-los com olhos de editor, mas tenho medo de que não poderei publicá-lo na Argentina nestas condições. Talvez nós possamos publicá-lo na Itália”.
A sentença foi um balde de água fria para o jovem educador. Muitas horas tinham sido gastas para produzir o livro em uma velha casa sem eletricidade no povoado de Trevelin, a 26 quilômetros da cidade argentina de Esquel.
Julio perguntou a Torres o que ele fazia na Patagônia e, ao saber que estava ministrando cursos em escolas e em uma universidade usando textos de Freire, Karl Marx e Jean Piaget, o interrompeu com um tom de voz preocupada: “Carlos, você precisa retornar imediatamente, pedir os programas de seus cursos, destruí-los e trocá-los por outros com bibliografias diferentes, que não incluam Piaget, Freire ou Marx. O governo está inspecionando estabelecimentos educacionais e, como estes autores foram banidos, podem haver conseqüências muito graves para aqueles que os ensinarem.”
Mesmo assim, Torres não se impressionou. “Em minha ingenuidade, perguntei a ele por que a situação lhe parecia tão difícil”, conta. Julio abriu a gaveta de sua escrivaninha e tirou de dentro uma revista muito popular na classe média. Havia duas páginas inteiras no meio com uma reportagem falando de Paulo Freire. A página da esquerda continha trechos tirados de Educação como Prática de Liberdade, a da direita passagens de Pedagogia do Oprimido. “Eram algumas das sentenças mais incendiárias dos dois livros, deslocadas totalmente do contexto original”, recorda Torres.
Ao fim da matéria, a sentença que resumia tudo: “a Revolução Argentina foi feita contra este tipo de educação marxista para nossas crianças”. Julio fechou a revista, olhou para Torres diretamente nos olhos e explicou que era preciso ser muito cuidadoso naquele tempo em particular. “Esta conversa mudou minha vida e talvez tenha salvado a mim e à minha família de um futuro de tortura ou morte certa”, conta.
A história acima não ocorreu apenas na Argentina. Ela se refletiu também no Brasil e em diversos países onde o pendor autoritário não permitia que Paulo Freire fosse sequer lido, quanto mais publicado. Não à toa, todos aqueles que comandavam regimes autoritários percebiam nele o potencial revolucionário que de fato sua obra tentava traduzir não somente por um método de ensino, mas utilizando-se de uma nova teoria do conhecimento que subvertia boa parte da tradição filosófica ocidental.
“Estou tentando fazer o Paulo Freire entrar mais na universidade, mostrando que ele era uma pensador rigoroso, não apenas intuitivo, sem rigor científico. Ele contrariou a ontologia aristotélica, toda nossa teoria do ser, a tradição ocidental, que diz que tudo o que existe é uma estrutura”, explica o professor José Eustáquio Romão, estudioso da obra freireana e que também conviveu com Paulo Freire entre 1986 e 1997. “Não existe o ‘ser’, mas sim o ‘está sendo’. Segundo Paulo, todos somos incompletos, já que precisamos uns dos outros; inconclusos, já que estamos em transformação; e inacabados, ou seja, imperfeitos”, argumenta.
Romão explica que o cerne do pensamento freireano está justamente na insatisfação que move o ser humano para o “ser mais”. “Aristóteles dizia que o que diferencia o ser humano dos outros seres é o raciocínio. Paulo Freire olhava pro cachorro dele e dizia ‘não tenho certeza se esse cachorro não pensa. Mas sei o que sou e fico insatisfeito por ser assim, por isso me esforço para não ser o que sou. Já o cachorro não faz esse esforço’”, analisa. “Não é à toa que ele desenvolve uma teoria do ser, que é a pedagogia do oprimido, e a teoria do ser mais, a pedagogia da esperança. O que diferencia o ser humano é a capacidade ter esperança, de ‘esperançar’”, conclui.
Romão conta que a primeira obra que leu de Freire sequer havia sido publicada, era o texto escrito para um concurso de professor na Faculdade de Belas Artes do Recife, publicado após sua morte pelo próprio Romão. Educação e atualidade brasileira tinha, na nota de rodapé 14, uma crítica pontual ao pensamento vigente à época na intelectualidade brasileira.
“Os grandes autores à época, principalmente o pessoal do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, diziam que o Brasil era subdesenvolvido, mas havia chegado a hora da virada, motivada pelo projeto nacional-desenvolvimentista. De acordo com eles, o contexto era favorável à revolução”, elucida Romão. A tese de Paulo Freire era de que, naquele momento, o povo emergia na arena política, uma relativa novidade para um país com a tradição autoritária do Brasil. Mas, ao mesmo tempo, Freire dizia que a revolução não seria possível, “porque não adiantava o cavalo estar arriado, era preciso montá-lo”, segundo o professor. “Ou seja, era preciso um processo de educação popular, um processo pedagógico. Ele fez algo extremamente marxista, existia a tese, a antítese, mas ainda não a síntese. Os intelectuais tinham parado na antítese. Aquilo era um projeto populista, tinha um limite estrutural nele mesmo.”
Em todo lugar
A teoria freireana se estende não apenas por inúmeras áreas do conhecimento humano, mas também por diversos países que têm realidades totalmente diferentes. Foram dezenas de livros publicados em mais de 30 idiomas e outros 40 títulos honoris causa. Seu nome está relacionado a mais de cem instituições em todo o planeta.
Nos Estados Unidos, Paulo Freire é inspiração para educadores, mas também se firmou como referência política, influenciando no campo de atuação da esquerda norte-americana. “Ele sempre foi conhecido aqui como revolucionário em educação de adultos nos anos 1970 e no início dos 1980”, explica Carlos Alberto Torres, o jovem do início do texto, hoje radicado nos EUA. “Entretanto, com sua introdução em programas de treinamento de professores nos Estados Unidos, Freire foi rapidamente colocado como um ‘guru’ da Nova Esquerda nos EUA e também internacionalmente. Seu trabalho transcende o campo da educação e suas teorias são praticadas e aplicadas em diversos setores, particularmente aqueles ligados a políticas culturais”, pontua.
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