No fim do ano 2000, em Palermo, as Nações Unidas aprovaram o primeiro e até agora único instrumento jurídico internacional sobre criminalidade organizada transnacional. Possui 41 artigos e ficou conhecido como Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional ou, simplesmente, Convenção de Palermo. No Brasil, ela mereceu aprovação do Congresso Nacional apenas em 2004. Na abertura dos trabalhos, o então secretário-geral da ONU, Kofi -Annan, revelou que o crime organizado obtinha lucros que cresciam anualmente entre 40% e 50%.
Para a polícia civil do Rio de Janeiro, o recém-aprisionado Antônio Bonfim Lopes, apelidado Nem, “faturava mais de 100 milhões de reais por ano”, a partir da Favela da Rocinha, territorial e socialmente reconquistada pelo Estado no domingo 13, sem troca de tiros. Na Rocinha e nos vizinhos complexos habitacionais do Vidigal e Chácara do Céu está em implantação a 19ª Unidade de Polícia Pacificadora.
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Na Rocinha, fincou raízes, num arco de três décadas, o crime organizado empresarial de matriz pré-mafiosa. Uma empresa delinquencial que tem até “razão social”: Amigos dos Amigos (ADA). Na ADA, sediada na Rocinha, Nem, como fazia em São Paulo Juan Carlos Abadia para o cartel do Vale Norte, atuava como executivo, ou melhor, era o chief executive officer (CEO).
Ainda não está desvendada a forma de circulação dos 100 milhões de reais. Seguramente não se deu pelas agências bancárias nem se ocultou em buracos na terra, como aconteceu com fuzis, munições e drogas. Até agora não se falou nem se identificou o financista da ADA, que não deve ser confundido com o contador próximo a Nem. Por evidente, esse vultoso fluxo de dinheiro não serviu apenas para o pagamento do “alvará” que garantiu funcionamento da empresa criminal por anos.
O crime organizado empresarial, em geral, conta, além do capital sujo obtido pelas atividades ilícitas, com aporte de giro para se abastecer. No caso da ADA, a organização, fora da Rocinha, adquiria cocaína, pasta básica de coca e maconha. E na própria comunidade operava laboratórios para multiplicar (batizar), com insumos, as drogas colocadas no mercado consumidor. Esse capital de giro se presta também a armar e municiar os empregados na segurança da ADA, destacados nas tarefas de difundir o medo na comunidade, manter a lei do silêncio e promover enganosas ações sociais. Essa forma de crime organizado empresarial garantiu ao executivo Nem, quando da fuga, a assistência de três bandidos inscritos na Ordem dos Advogados.
Nos trabalhos preparatórios à Convenção de Palermo, vários casos de executivos e financistas criminosos foram levantados. Um deles referia-se a seis potentes megatraficantes internacionais presos num balneário da Costa do Sol (Espanha) por força de mandado expedido pela Itália. O pedido de extradição foi negado pela Justiça espanhola. E todos foram soltos sob o argumento de não terem sido citados pessoalmente para o processo, ou seja, terem sido condenados à revelia. Essa é uma exigência da legislação processual espanhola, mas não a da italiana, que se contentava com a citação ficta por meio de editais e para casos de criminalidade organizada de matriz mafiosa. Os capi sabem se esconder e atuam, como revelou a Cosa Nostra sículo-americana, em várias partes do mundo. -Tommaso Buscetta ficou conhecido como o “boss dos dois mundos” e, obviamente, escolheu, como Abadia e o assassino Cesare Batisti, o Brasil para se esconder.
A propósito, no Brasil, a citação pessoal, ainda que se cuide de foragidos perigosos como Nem e Beira-Mar, é obrigatória. Nem possui apenas uma condenação por associação ao tráfico de drogas proibidas e está apenado, não definitivamente, com oito anos e quatro meses de prisão. Perto de 20 acusações contra ele aguardam sua citação pessoal. Para fins eleitorais, Nem, com condenação por um juiz e não por órgão judiciário colegiado, é um “ficha-limpa”. Enquanto o crime organizado empresarial atua sem fronteiras e contamina os sistemas financeiros e bancários, a legislação brasileira mantém o garantismo da citação pessoal. Não temos ainda uma legislação adequada e codificada para contrastar esse fenômeno.
O legislador brasileiro acabou de inovar de modo a beneficiar a delinquência organizada. Pela novíssima norma processual penal, o juiz não pode decretar a prisão preventiva de integrantes de quadrilhas ou bandos que sejam primários. O novo dispositivo favoreceu colarinhos-brancos associados e integrantes de uma categoria que os penalistas chamam de criminosos potentes ou poderosos. Por tabela, o novo dispositivo beneficia gente da ADA, PCC, Comando Vermelho etc. Nem é, por exemplo, primário.
Apesar dos Beltrames, Freixos, Frossards e Patrícias Aciolis da vida, o crime organizado continua a vencer o Estado, a corromper autoridades e a manter ocultos os seus financistas.