Para muitos, os últimos dias de dezembro e os primeiros de janeiro são carregados de nobres sentimentos, com predominância da gratidão e da esperança. Agradecer pelo que passou e esperar dias melhores. E esses dois substantivos abstratos que se esvaziam com o tempo – gratidão e esperança – me fizeram lembrar um vendedor de açaí que conheci faz poucos dias, durante uma viagem de trabalho pelo mais profundo interior do Pará.
Galdino, seu nome, 73 anos, transformou gratidão e esperança em substantivos concretos. Ele mora em Vira Sebo, uma comunidade ribeirinha do município de Prainha, no Oeste do Pará e que fica a quase seis dias de barco de Belém. Aquela região do Tapajós não tem relação com a capital do estado. As referências urbanas ali são Santarém/Pa, Manaus e Macapá. Aliás, aquela região tem pouca referência do Brasil conhecido pela maioria de nós.
Durante uma semana, a presença de seu Galdino foi constante. Eu estava hospedado na agência flutuante da Previdência Social que atende as pessoas em locais de muito difícil acesso. O Prevbarco, no imenso rio Amazonas, tinha atracado ali, no pequeno porto da Prainha. Antes que o sol nascesse, seu Galdino já estava lá. Em pé. Olhar fixo em um horizonte sem fim de um rio que parece oceano. Ao seu lado um carrinho-de-mão com caixa de isopor. Nela, sacos plásticos com uma espécie de purê de açaí.
Figura esguia marcada pelo tempo. Chapéu de palha. Roupas surradas. Vez ou outra ele abria a caixa, parecia conferir o conteúdo e logo voltava a perder o olhar no infinito do rio. Por volta das 11 horas, sol insuportável, retirava do isopor uma cuia, despejava o açaí e misturava com um punhado da grossa farinha amarela de mandioca d´água. Antes que as últimas garças cortassem o céu cor de ouro, por volta das 17 horas, seu Galdino pegava a rabeta (pequena canoa com motor e hélice na trazeira) e sumia nas águas do Amazonas em busca de Vira Sebo. Não se via vender nada.
Todos os dias eram rigorosamente iguais. No meu último dia ali, falei com ele. Com uma alegria e simplicidade intensas e incomuns, seu Galdino me contou que cumpria esse ritual fazia quase dez anos. Falava com uma emoção e um prazer da vida que jamais tinha visto. A conversa não sai da lembrança. Não tinha queixas, tristezas, frustrações a expressar. Incomodado e educado para o capital, eu quis saber se não tinha prejuízo passar vários dias em vão, sem vender um saquinho de açaí aos poucos barcos que ali chegavam. Com um sorriso, respondeu-me, mais ou menos assim:
“Não preciso de dinheiro. Tenho tudo o que preciso. Mandioca, peixe e açaí. Agradeço a Deus por esses presentes, frutos da terra e do trabalho do povo. O açaí? se alguém quiser, tudo bem. Se não, não tem problema. Venho amanhã de novo. Pode apostar!”. Ri e depois de alguns segundos em silêncio, completa: “Na verdade não vendo açaí. Meu filho foi a Macapá faz dez anos e prometeu voltar. Não sei dia nem hora, mas ele volta e vai chegar por aqui. Espero desde o dia seguinte de sua viagem. Disse que quando ele voltasse, iria me encontrar com o açaí na mão. Demora, mas ele chega”. A espera de seu Galdino não era esperança triste e vazia, mas uma certeza viva, renovada a cada dia.
Desse rápido contato, várias lições. Uma que é preciso agradecer sempre, mas não a gratidão passiva. O peixe, a farinha, o açaí – frutos da terra – não serviriam para o sustento sem a intervenção do homem. Outra é que a esperança se busca. Seu Galdino não ficou no povoado a espera. Foi para além de onde podia, enfrentando o medonho rio numa pequena rabeta. Apesar de uma espera infinita e monótona para nós, lá estava ele, todos os dias no porto. E a cada dia, um homem novo, com esperanças novas, ou melhor, certezas. A chegada de seu filho não implicaria dias melhores do ponto de vista financeiro – ele não precisa – apenas a possibilidade dele agradecer mais ainda pela vida.
Os sentidos do tempo, da alegria, do humano e da vida ensinados por seu Galdino são muito diferentes dos quais nós temos numa sociedade urbana do consumo desumano, fugaz e imediato.
Naquele mesmo dia dessa conversa, uma quinta-feira, 8 de dezembro, final da tarde, um barco vindo de Macapá com direção a Santarém chegou a Prainha. O filho dele não estava. Eu entrei na embarcação para seguir meu destino. No porto, seu Galdino, alegre acena para mim e, já de longe, grita: “amanhã vou estar aqui de novo”. De Macapá a Santarém, passando pela Prainha, só passam dois barcos de linha por semana.