Mais uma vez profissionais do magistério da rede pública do Estado de Sergipe – representados por seu sindicato, o SINTESE – e o Governo do Estado divergem publicamente sobre a correta aplicação da legislação do piso salarial nacional do magistério público. Essa divergência remonta ao ano de 2009 – ano da efetiva aplicação da Lei n° 11.738/2009 (que institui o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica), e vem se arrastando ao longo dos anos, gerando anuais embates (próprios do regime democrático e da sociedade contemporânea pluralista e complexa), inclusive com intensas movimentações reivindicatórias – incluindo greves – por parte dos primeiros. A mais recente mobilização dos profissionais do magistério inclui uma greve que já completou 50 (cinquenta) dias.
O ponto essencial da controvérsia é o seguinte: ao dispor que nenhum profissional do magistério público da educação básica da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios pode receber, como vencimento base para jornada de 40 horas mensais de trabalho, valor inferior ao piso nacional estabelecido em lei e reajustado anualmente, a Lei n° 11.738/2009 obriga a extensão dos percentuais de reajuste anual do valor do piso aos demais níveis da carreira?
Para o Governador do Estado, Marcelo Deda, não existe essa obrigação: “A luta dos professores é por um reajuste de 22%, mas não é que é direto não. A lei estadual desde dezembro estabelece que o Piso é para aqueles que recebem efetivamente o Piso e os 11 mil não foram reajustados por que recebem acima, logo não tem direito. Você não pode reajustar pelo Piso, aqueles que já ganham acima” (conforme reportagem publicada aqui na Infonet: http://www.infonet.com.br/politica//ler.asp?id=128973).
A referência a 22% decorre do reajuste do valor do piso nacional para o ano de 2012. No entendimento do Governador do Estado, como nenhum professor recebe valor inferior a R$ 1.451,00 (valor definido pelo MEC para piso nacional do magistério, após incidência do reajuste de 22,22%), a lei está sendo devidamente cumprida pelo Governo do Estado.
Essa interpretação, a meu sentir, faz tábula rasa da aplicação sistemática do direito aplicável ao caso. Como gostava de repetir o ex-Ministro do STF e Professor Eros Roberto Grau, o direito não pode ser interpretado “em tiras”.
Afinal, se na organização da Administração Pública, existem cargos isolados e cargos em carreira, nos termos da Constituição Federal, o magistério público é obrigatoriamente organizado em carreira (Art. 206, inciso V da Constituição Federal). E a organização do magistério público em carreira pressupõe agrupamento e escalonamento de tarefas e responsabilidades, admitida a progressão funcional [“(…) o que importará acréscimo de remuneração e às vezes no exercício de atribuições mais complexas, mas de mesma natureza de trabalho”] (Cf. Odete Medauar, Direito Administrativo Moderno, 8. ed., São Paulo: RT, 2004, p. 316-317).
Isso implica dizer que o reajuste do valor do piso nacional ao vencimento no ponto inicial na carreira do magistério (formação em nível médio, na modalidade normal) implica obrigatoriamente a extensão desse mesmo reajuste no vencimento dos demais pontos da carreira, impondo uma recomposição geral dos vencimentos-base de todos os seus escalões.
Do contrário, ter-se-ia a elevação dos vencimentos dos professores de nível médio e a estagnação dos vencimentos dos professores dos demais níveis na carreira, com evidente achatamento salarial e negação do princípio básico da organização da carreira do magistério público.
Não foi essa a intenção das normas constitucionais e legais que dispõem sobre o piso, mas, ao contrário, promover a “valorização dos profissionais da educação escolar”, sendo os planos de carreira – a partir do piso salarial nacional – instrumentos de sua realização, tudo em prol de uma educação pública de qualidade.
Convém ressaltar que o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de declarar a constitucionalidade da Lei n° 11.738/2009, decisão que tem eficácia vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública de todos os entes federativos (decisão tomada na ADI n° 4167, e que já foi objeto de comentário neste mesmo espaço da Infonet. Confira em http://www.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=111984&titulo=mauriciomonteiro).
Essa interpretação, que leva em conta a disposição constitucional do magistério público em carreira, permite concluir que é a partir mesmo da Constituição da República que, a partir do ano de 2009, todos os reajustes anuais do valor do piso nacional do magistério público devem ser obrigatoriamente estendidos, no mesmo percentual, a todos os demais níveis da carreira.
Há mais, porém. Ainda que se desconsiderasse a determinação constitucional (hipótese que se coloca aqui apenas para argumentação, por absurda), a extensão do reajuste do valor do piso nacional do magistério a todos os níveis da carreira é uma obrigação estatuída em lei estadual.
Com efeito, a Lei Complementar Estadual n° 61/2001, que trata do Plano de Carreira e Remuneração do Magistério Público do Estado de Sergipe, dispõe expressamente sobre o escalonamento da carreira, com fixação de índices de escalonamento vertical, em relação ao vencimento do Nível I:
Art. 28. Os valores de vencimento, correspondentes, nas Classes, aos Níveis I, II, III, IV e V, componentes do Quadro Permanente dos Profissionais do Magistério Público Estadual, são fixados com os seguintes índices de escalonamento vertical, entre Níveis, em relação ao vencimento do Nível I da respectiva Classe:
NÍVEL ÍNDICE
I 1,0
II 1,7334
III 1,850
IV 2,0
V 2,150
Ora, é a própria lei estadual que determina que se houver qualquer reajuste no nível inicial da carreira, esse mesmo reajuste deve ser concedido aos demais níveis, de modo a manter o escalonamento fixado a partir dos índices também determinados na lei. Essa imposição do Art. 28 da Lei Complementar Estadual n° 61/2011 nada mais é do que a garantia da obrigação constitucional da organização do magistério público em carreira, que pressupõe, como antes dissemos, agrupamento e escalonamento de tarefas e responsabilidades, admitida a progressão funcional, com acréscimo de remuneração.
Pode o Governo do Estado contra-argumentar – como efetivamente já o fez – no sentido de que a Lei Complementar Estadual n° 213/2011, ao extinguir o antigo Nível I do Quadro Permanente dos Profissionais do Magistério Público Estadual e realocar os demais níveis da carreira do magistério, antes II, III, IV e V para I, II, III e IV (Art. 1°, § 1°), passou a fixar como primeiro nível da carreira do magistério público estadual o nível que tem como pressuposto de habilitação a formação em graduação em licenciatura plena ou graduação em pedagogia, admitida a habilitação específica obtida em programas de formação pedagógica para portadores de diploma de educação superior, e não mais a formação em nível médio na modalidade normal. E que esse primeiro nível já recebe, como vencimento base, valor superior aos R$ 1.451,00 fixados como piso nacional do magistério para o ano de 2012.
Todavia, como já dissemos aqui mesmo na Infonet, essa Lei Complementar Estadual n° 213/2011 é inconstitucional, porque invade competência legislativa privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional e para legislar sobre condições para o exercício de profissões (confira a íntegra da coluna em que tratamos especificamente desse assunto: http://www.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=123898&titulo=mauriciomonteiro).
Nesse gancho, concluímos o raciocínio também já anteriormente exposto aqui neste mesmo espaço da Infonet, segundo o qual a Lei Complementar Estadual n° 213/2011 foi aprovada pouco antes do início do recesso do final do ano passado com o evidente propósito de burlar a aplicação integral das disposições constitucionais e da lei nacional n° 11.738/2008, referentes ao piso salarial nacional do magistério público (http://www.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=122054&titulo=mauriciomonteiro).
*É advogado militante no ramo do direito público, membro do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil e Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da mesma entidade. É mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará e professor universitário. Atualmente lecionando a matéria Direito Constitucional na Universidade Tiradentes (graduação e pós-graduação).