As pessoas imaginam profundas articulações onde, em geral, há mecanismos bastante simples. Nada como alguns exemplos para ver como funciona. Há poucos anos estourou o desastre da Enron, uma das maiores e mais conceituadas multinacionais americanas. Foi uma crise financeira e um dos principais mecanismos de geração fraudulenta de recursos fictícios, foi um charme de simplicidade. Manda-se um laranja qualquer abrir uma empresa laranja num paraíso fiscal como Belize. Esta empresa reconhece por documento uma dívida de, por exemplo, 100 milhões de dólares. Esta dívida entra na contabilidade da Enron como “ativo”, e melhora a imagem financeira da empresa. Os balanços publicados ficam mais positivos, o que eleva a confiança dos compradores de aç&otild e;es. As ações sobem, o que valoriza a empresa, que passa a valer os cem milhões suplementares que dizia ter.
Os executivos da Enron acharam o processo muito interessante. O setor de produção (que produzia efetivamente coisas úteis) foi colocado no seu devido lugar, e os magos da finança se lançaram no filão que apresentava a vantagem de ser menos trabalhoso e mais lucrativo.
No momento da falência, a Enron tinha 1600 empresas fictícias na sua contabilidade. A empresa de auditoria Arthur Andersen não percebeu. As empresas de avaliação de risco não perceberam. A primeira tinha a Enron como cliente de consultoria. As segundas são pagas pelas empresas que avaliam.
Partimos deste exemplo da Enron porque é simples, representa um mecanismo de fraude honesto e transparente. Não viu quem não quis. E também para marcar o que é uma cultura da área financeira, onde vale rigorosamente tudo, conquanto não sejamos pegos. Não é o reino dos inteligentes (tanto assim que quebram), mas dos espertos. E os que buscam produzir bens e serviços realmente úteis são levados de roldão, em parte culpados porque toleraram idiotas disfarçados em magos de finanças e marketing. Qualquer semelhança com empresas nacionais que se lançaram em aventuras especulativas é mera coincidência.
O estopim da crise financeira de 2008 foi o mercado imobiliário norte-americano. Abriu-se crédito para compra de imóveis por parte de pessoas qualificadas pelos profissionais do mercado de Ninjas (No Income, No Jobs, no Savings). Empurra-se uma casa de 300 mil dólares para uma pessoa, digamos assim, pouco capitalizadas. Não tem problema, diz o corretor: as casas estão se valorizando, em um ano a sua casa valerá 380 mil, o que representa um ganho seu de 80 mil, que o senhor poderá usar para saldar uma parte dos atrasados e refinanciar o resto. O corretor repassa este contrato – simpaticamente qualificado de “sub-prime”, pois não é totalmente de primeira linha, é apenas sub-primeira linha – para um banco, e os dois racham a perspectiva suculenta dos 80 mil dólares que serão ganhos e pagos sob forma de reembolso e juros. O banco, ao ver o volume de “sub-prime” na sua carteira, decide repassar uma parte do que internamente qualifica de “junk” (aproximadamente lixo), para quem irá “securitizar” a operação, ou seja, assegurar certas garantias em caso de inadimplência total, em troca evidentemente de uma taxa. Mais um pequeno ganho sobre os futuros 80 mil, que evidentemente ainda são hipotéticos.
Hipotéticos mas prováveis, pois a massa de crédito jogada no mercado imobiliário dinamiza as compras, e a tendência é os preços subirem.
As empresas financeiras que juntam desta forma uma grande massa de “junk” assinados pelos chamados “ninjas”, começam a ficar preocupadas, e empurram os papéis mais adiante. No caso, o ideal é um poupador sueco, por exemplo, a quem uma agência local oferece um “ótimo negócio” para a sua aposentadoria, pois é um “sub-prime”, ou seja, um tanto arriscado, mas que paga bons juros. Para tornar o negócio mais apetitoso, o lixo foi 1 “A sedução do jogo envolveu até gerentes de empresas industriais, como os da Sadia, que perdeu R$670 milhões apostando em derivativos, e a Aracruz, que perdeu R$1,85 bilhão” – Bernardo Kucinski, Revista do Brasil, Novembro 2008, p. 18; a Sadia demitiu 350 funcionários em janei ro de 2009, como se fossem os responsáveis. Ele mesmo dividido em AAA, BBB e assim por diante, permitindo ao poupador, ou a algum fundo de aposentadoria menos cauteloso, adquirir lixo qualificado. O nome do lixo passa a ser designado como SIV, ou Structured Investment Vehicle, o que é bastante mais respeitável. Os papéis vão assim se espalhando e enquanto o valor dos imóveis nos EUA sobe, formando a chamada “bolha”, o sistema funciona, permitindo o seu alastramento, pois um vizinho conta a outro quanto a sua aposentadoria já valorizou.
Para entender a crise atual, não muito diferente no seu rumo geral do caso da Enron, basta fazer o caminho inverso. Frente a um excesso de pessoas sem recurso algum para pagar os compromissos assumidos, as agências bancárias nos EUA são levadas a executar a hipoteca, ou seja, apropriam-se das casas. Um banco não vê muita utilidade em acumular casas, a não ser para vendê-las e recuperar dinheiro. Com numerosas agências bancárias colocando casas à venda, os preços começam a baixar fortemente. Com isso, o Ninja que esperava ganhar os 80 mil para ir financiando a sua compra irresponsável, vê que a sua casa não apenas não valorizou, mas perdeu valor. O mercado de imóveis fica saturado, os preços caem mais ainda, pois cada agência o u particular procura vender rapidamente antes que os preços caiam mais ainda. A bolha estourou. O sueco que foi o último elo e que ficou com os papéis – agora já qualificados de “papéis tóxicos” – é informado pelo gerente da sua conta que lamentavelmente o seu fundo de aposentadoria tornou-se muito pequeno. “O que se pode fazer, o senhor sabe, o mercado é sempre um risco”. O sueco perde a aposentadoria, o Ninja volta para a rua, alguém tinha de perder. Este alguém, naturalmente, não seria o intermediário financeiro. Os fundos de pensão são os alvos prediletos, como o foram no caso da Enron…
Para a íntegra desta análise do professor Ladislau Dowbor, acessar http://dowbor.org.
Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “Democracia Econômica” (Vozes), “O que é poder local” (Brasiliense) e de numerosos estudos sobre desenvolvimento.