Ensino médio afasta aluno da escola

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Até a 8ª série, Evelyn Manuel Rodrigues era a típica boa aluna, com caderno caprichado, gosto pelos estudos e notas acima da média. Na 1ª série do ensino médio, seu rendimento caiu, faltou várias vezes às aulas, chegou atrasada tantas outras, acabou reprovada e desistiu de estudar. Longe de ser uma exceção, ela entrou para um grupo que consiste na metade dos estudantes desta etapa de ensino: os que desistem antes de terminá-la. A escola não consegue manter o interesse dos adolescentes.

A falta de atratividade é tema da segunda reportagem da série do iG Educação sobre o ensino médio. Além dos alunos que deixam de estudar nesta fase, muitos dos que ficam não demonstram vontade de aprender, o que contribui diretamente para torná-la a pior etapa da educação brasileira.

 

Foto: Guilherme Lara Campos/Fotoarena

Para especialistas, ensino médio com o o currículo atual é inútil para a maioria dos estudantes

 

“O ensino médio, como está, é algo inútil na vida da maioria dos jovens”, afirma Elizabeth Balbachevsky, livre docente do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora participante de grupos internacionais na área de educação para jovens. Para ela, a orientação para o vestibular, objetivo de quase todas as escolas desta etapa, é um desperdício.

 

“Para quem não está na perspectiva de entrar na faculdade, a sala de aula não tem nada a oferecer. O ensino brasileiro tem uma carga muito forte, toda preparatória para o acesso à universidade e não para a vida ou o curso superior em si”, comenta. O problema é que a maioria não vai prestar o tão esperado processo seletivo, principalmente antes de experimentar primeiro o mercado de trabalho: só 15% dos jovens brasileiros de até 29 anos fizeram ou estão fazendo um curso superior. Nos países mais desenvolvidos esta porcentagem dobra, mas ainda fica muito longe de ser maioria.

O coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, concorda que o foco do ensino médio precisa ser ajustado. “No mundo todo, a fase tem um caráter terminativo. Dali para frente a pessoa está preparada para começar a vida adulta, pode até ser na faculdade, para quem quer, mas também pode ser trabalhando ou em qualquer projeto. A educação básica está concluída”, diz.

 

Foto: Amana Salles/Fotoarena Ampliar

Para Ayrton Souza, única função do ensino médio é preparar para o vestibular

Hoje aos 19 anos, Evelyn Rodrigues, a jovem que abre esta reportagem, percebeu a falta que lhe faz os estudos. Nos três anos em que ficou longe da sala de aula, trabalhou como tosadora de cães, foi morar com o namorado e ficou grávida. “Nesta época, eu queria trabalhar. Quando arrumei um emprego, achei que estava aprendendo mais lá do que na escola. A aula parecia não ter muito a ver com minha vida. Agora sei que era fundamental para melhorá-la.”

“Acho que a escola podia dar um curso”

Os alunos do ensino médio reconhecem o objetivo pré-vestibular da escola. Ao ser questionado sobre para que serve essa fase, Ayrton Senna da Silva Souza, de 16 anos, estudante do 3º ano na escola estadual José Monteiro Boanova, no Alto da Lapa, área nobre de São Paulo, resume a função em uma frase: “Para mim, esta é a etapa que vai mostrar quem está pronto para entrar na faculdade”, disse.

 

Foto: Amana Salles/Fotoarena Ampliar

Recém-formado, Carlos Educardo Dias acha que a escola podia ter oferecido “cursos” que ajudassem na busca do emprego

Quando a pergunta é o que gostariam que a escola oferecesse, a resposta muda. “Um curso”, responde Carlos Eduardo Dias, de 18 anos, que se formou na mesma unidade em dezembro. Ele espera fazer curso superior um dia, quando souber melhor em que área quer se especializar e tiver dinheiro para pagar a mensalidade. Enquanto isso, trabalha como auxiliar em uma concessionária de veículos. “Tive sorte de ser indicado, mas acho que a escola podia dar um curso que ajudasse mais, de informática, de vendas, algo assim.”

Outra colega do 3º ano, Eliza Rock da Silva, de 17 anos, mesmo tendo a universidade como meta, gostaria de ter mais autonomia e um ambiente melhor para aprender. “Acho que se os alunos tivessem o direito de escolher parte do curso, diminuiria o desrespeito pelos professores e, quem tem interesse, conseguiria estudar. Eu gostaria.”

A superintendente do Instituto Unibanco, Wanda Engel, sugere, além de conteúdos voltados ao mercado de trabalho, mais atividades culturais e esportivas. Ela lembra que até pouco mais de uma década, o ensino médio era uma “festa” para os jovens que tinham acesso a ele. Os alunos se envolviam em grêmios estudantis, festivais culturais, competições esportivas e outras atividades que desapareceram da maioria das instituições. Para a educadora, só há dois motivos capazes de manter os jovens na escola: “ou eles vão porque vale o esforço, vão aprender algo útil e conseguir emprego; ou porque há atrações que os envolvem”.

Foto: Amana Salles/Fotoarena Ampliar

Para Eliza, mais autonomia geraria respeito em sala de aula para interessados poderem estudar

Formação do ser humano

Nem só o mercado de trabalho precisa de jovens bem formados. O professor de Políticas Educacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Pablo Gentile, lembra que os jovens também são cidadãos, eleitores e ajudam a definir a cara da sociedade brasileira por gerações. “O ensino médio deveria se preocupar com a formação do ser humano”, resume.

Ele entende que a adolescência é um momento de transformação da pessoa e, portanto, é essencial que bons valores sejam apresentados. “O ensino médio é uma oportunidade ímpar para que o jovem se depare com o conhecimento que vai torná-lo ativo e produtivo”, afirma.

Para ele, em vez de um conteúdo voltado ao vestibular ou ao mercado de trabalho imediato, as escolas deveriam focar nas disciplinas que ampliam o entendimento do mundo em que vivem, com noções de política, filosofia, sociologia, ciências, português e matemática. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tenta atrair a escola para esses focos, ao solicitar nas provas de acesso a boa parte das universidades públicas mais conhecimentos gerais e capacidade de raciocínio do que conteúdos específicos. “Um cidadão melhor se tornará, inclusive, bom profissional.”