O delegado Orlando Zaccone Filho, responsável pelo controle de presos da Polinter (Delegacia de Capturas e Polícia Interestadual) do Rio de Janeiro, fala sobre a operação policial no Complexo do Alemão e não vê grandes possibilidades de uma solução a curto prazo para a violência no Rio de Janeiro. “É muito mais fácil ficar fazendo uma guerra que não acaba nunca, uma vez que a única coisa que pode definir a questão é um debate a respeito da legalização de algumas dessas substâncias, o que demanda mais tempo, mais seriedade, mais estudos e principalmente, mais organização política, que é o que está faltando para esse debate”, alerta.
Para Zaccone, a mídia, com a sua cobertura, também contribuiu para o fortalecimento de um modelo de segurança pública que não abarca a totalidade do problema, cuidando apenas da parte menos rentável do comércio ilegal de drogas, o varejo. “Dentro dessa ideia de se veicular que estamos em guerra, se o campo de batalha for aquela comunidade, caracteriza-se um estado de exceção onde direitos e garantias podem ser violados porque os meios vão justificar os fins.”
Fórum – Como o senhor analisa o comportamento geral da mídia nessa última operação?
Orlando Zaccone Filho – Sigo muito as lições de um jurista argentino chamado Eugenio Raul Zaffaroni que, ao analisar a questão da violência urbana, nota que existe o fato em si e o fato construído midiaticamente. No caso do Rio, vou dar um exemplo em razão da função que exerço hoje de coordenador do controle de presos. Nós, da polícia, sabemos que aqueles que incendeiam carros e ônibus nas ruas, em geral, são os garotos mais vulneráveis e mais fracos. O cabeça, o líder de uma facção não vai pra rua fazer o serviço de um incendiário. Ele pega às vezes muitos menores, alguns com problemas mentais, e encaminha esses garotos pra fazer esse tipo de ação. Esse é o fato em si, que todo policial sabe. Depois temos o fato construído midiaticamente. Esses incêndios são considerados atos de terrorismo e midiaticamente você trabalha esses rapazes como terroristas, que são encaminhados para Catanduvas. Esse que é o grande problema, hoje as autoridades não dão uma resposta para o fato em si, mas para o fato midiaticamente construído.
Fórum – Muitas vezes então as operações policiais têm a ver com uma resposta ao que a mídia constrói e não ao fato em si?
Zaccone – Isso. Aconteceram incêndios que foram determinados por uma facção e executados por pessoas que às vezes nem fazem parte da facção. Pessoas que às vezes são selecionadas para fazer esse serviço na hora. Dentro da estrutura do terror que os grupos armados impõem a algumas comunidades essas pessoas são quase que obrigadas a tais condutas. Mas na resposta das autoridades elas são tratadas como as principais articuladoras do movimento.
Fórum – Ou seja, o tratamento da questão fica na superficialidade.
Zaccone – Na verdade, a gente espetaculariza um fato, que é a violência urbana. A violência urbana é um fato, ninguém está dizendo que a imprensa constrói esse fato, mas sim que cria uma realidade a partir desse fato. Transformar esses atos em terrorismo, que atentam contra a estrutura estatal, reforça coisas que estão longe de ser a realidade como, por exemplo, quando se diz que com a ocupação no Alemão o Estado estaria retomando aquele espaço. Acredito que para o Estado retomar aquele espaço vai demorar muitos anos, até porque ele ficou abandonado por muitos anos. Não se faz ocupação do Estado apenas com polícia, a não ser que a gente trabalhe com a ideia de um Estado policial. Mas se pensamos num Estado democrático, de Direito, sabemos que não é só a polícia que vai garantir a cidadania daquela população.
A gente acaba comemorando a entrada do Estado antes de o Estado entrar. Polícia não é o Estado, é só uma força que garante a manutenção da ordem para que o Estado possa garantir serviços para uma população, mas antes da chegada dos serviços não podemos comemorar. Isso acaba reforçando uma ideologia, um fetichismo da polícia, como se ela fosse capaz de prover cidadania. Isso é um fetichismo que está sendo veiculado até por programas nacionais de segurança, onde se vincula cidadania à questão da segurança pública, que é uma das grandes críticas que temos que fazer hoje. Não somos contra que populações de áreas pobres tenham acesso à rede de esgoto, a quadras esportivas, a meios de transporte como o teleférico, mas o problema é você vincular todos esses direitos à manutenção de um modelo de segurança pública.
Fórum – E esse clima construído de guerra contribui para que muitos direitos dessas populações sejam violados…
Zaccone – Isso é uma outra questão, relativa ao estado de exceção. Dentro dessa ideia de se veicular que estamos em guerra, se o campo de batalha for aquela comunidade, caracteriza-se um estado de exceção onde direitos e garantias podem ser violados porque os meios vão justificar os fins. Permite-se violação de domicílio, a prisão de suspeitos sem flagrante ou mandado. Tudo visto pelo próprio poder constituído como um estado de exceção não declarado. O estado de exceção até está previsto constitucionalmente, mas tem que ser decretado.
Fórum – É um estado de exceção não decretado e legitimado midiaticamente.
Zaccone – A mídia colabora, mas não podemos dizer que é ela quem “decreta” o estado de exceção. Isso passa pela versão política, é só ver os discursos do presidente da República, do governador do Rio, do secretário de Segurança, a mídia vai junto. É uma decretação que se dá no campo político.
Fórum – O crime organizado já promove esse tipo de ação prevendo um determinado comportamento da mídia?
Zaccone – O crime organizado é um conceito que não é muito científico porque não existe um campo da ciência, como o Direito Penal, que consiga definir crime organizado. Isso é um conceito político. A única definição que temos foi feita pela ONU (Organização das Nações Unidas), por meio de um entendimento entre os países. Não é uma categoria que você possa colocar dentro de um campo de saber acadêmico. Por exemplo, o que é crime organizado no Rio pode não ser crime organizado em São Paulo. É uma atividade empresarial ilícita que pode ser desde o tráfico de drogas no varejo até outras atividades.
Mas não acredito que seja tão organizado a ponto de seus integrantes terem estratégia política. Às vezes eles são seduzidos por esse poder midiático de construir inimigos: se o nome deles é mencionado, até mexe com a sua vaidade. Quando se chama aquela casa do tal do Polegar de “mansão de veraneio”, isso é uma brincadeira de mau gosto porque é uma casa que, por dentro, tinha coisas básicas de qualquer motel de esquina, um teto de gesso rebaixado, uma piscina de plástico, e as pessoas falaram que aquilo era uma mansão de veraneio, passando a impressão que o negócio no varejo seria muito lucrativo. Acho que aquela realidade não mostra isso, se fosse muito lucrativo a mansão dele era nas Ilhas Cayman, não no Complexo do Alemão. Ele não ia sair da Mangueira pra tirar férias no Alemão.
Fórum – Mas quando essa casa é apresentada como uma mansão de veraneio serve para legitimar essa construção da tese…
Zaccone – Claro, você constrói os discursos. Primeiro, o discurso de que ali é o local da violência, como se toda a criminalidade do Rio de Janeiro viesse daquele gueto. Depois, quer se passar a ideia de que aquilo envolve grandes somas de dinheiro e se vincula o lucro do tráfico ao varejo, que é algo que qualquer economista sabe que não é verdade. Foi feita uma pesquisa na Secretaria Estadual da Fazenda em que se comprovou que o varejo do tráfico de drogas não tem lucro, porque os valores que eles arrecadam com a venda do tóxico, se for descontar o que têm que investir em armamentos para concorrer com outras quadrilhas, mais o dinheiro da corrupção, a perda da mercadoria, das apreensões, eles “rodam” dinheiro. Esse lucro no varejo é insignificante, mas você constrói, pelo discurso midiático, uma outra realidade na qual os caras viviam no conforto, a ponto de se chamar um barraco de mansão e a ida de um traficante de uma favela para outra de “veraneio”.
Fórum – E como reverter esses fatos construídos e combater a estigmatização dos moradores dessas comunidades?
Zaccone – Primeiro, desconstruindo. Tentei fazer isso no meu livro Acionistas do Nada, tentando mostrar que toda política de repressão às drogas está voltada para onde o lucro é muito pequeno, que é o varejo. É a mesma coisa você querer dizer que o lucro da venda de cigarro e de bebida está com o seo Manoel, que é o dono do botequim. Ele até tem lucro, mas é ínfimo perto do lucro dos produtores, dos grandes distribuidores. Na verdade, isso é algo que todo mundo sabe, não é preciso ser economista. Voltar os esforços para a última ponta do comércio de drogas estigmatiza as comunidades, é como se todo negócio das drogas estivesse na favela. Provavelmente quem ganha muito com esse negócio mora de frente pro mar, e não na favela, mas será que existe de fato um interesse em desarticular essa economia?
O mesmo acontece quando se fala em lavagem de dinheiro, você acaba pegando familiares dos varejistas, o que aconteceu nessa operação também. Mas será que a lavagem de dinheiro está num barraco melhorado, numa TV de plasma ou, que seja, em um único apartamento na Barra da Tijuca? O negócio das drogas, pelo que o Fundo Monetário Internacional calcula, é um dos quatro mais lucrativos do mundo, então a base econômica forte não está no varejo. E aí a coisa pega, porque você vai ter que questionar como esse comércio ilícito acaba aquecendo a economia. Assim como acontece com o mercado das armas e outros ilegais. Aquele dinheiro que sai do criminoso da ponta e entra nos grandes circuitos financeiros acaba sendo bom e se coloca uma outra questão: se o comércio das drogas não é do interesse do próprio sistema econômico.
Nesse ponto a discussão fica muito mais complexa e requer uma seriedade maior para se tratar o assunto. É muito mais fácil ficar fazendo uma guerra que não acaba nunca, uma vez que a única coisa que pode definir a questão é um debate a respeito da legalização de algumas dessas substâncias, o que demanda mais tempo, mais seriedade, mais estudos e principalmente, mais organização política, que é o que está faltando para esse debate. A gente esvazia a questão política e fica só na coisa sacralizada do bem e do mal. Hoje a polícia é o bem e os traficantes, o mal. Mas houve época em que esses caras eram o bem pra comunidade e a polícia era o mal. Se você fosse ver o Escadinha lá no morro do Juramento, ele era o bem. Se essa operação tivesse acontecido naquela época… A coisa do bem e do mal é muito temporal, maconha hoje é droga leve, pesada hoje é o crack. Quem sabe amanhã o crack não vire droga leve também? O discurso que fazem do crack hoje é muito parecido com o discurso que faziam da maconha nos anos 1950 e 1960. Se a gente quer sair um pouco disso, precisamos ir além do bem e do mal, temos que estudar as relações sociais, e aí entra o debate da legalização das drogas.
Fórum – Que é um debate sempre adiado.
Zaconne – O debate fica de fora de tudo que vem sendo falado pela mídia, acho impressionante isso. Em meio a uma confusão em que toneladas de maconha são incineradas no forno da CSN, ninguém para e fala: gente, uma guerra desse tamanho pra botar fogo em toneladas de mato? Será que esses que estão queimando essa planta não fazem uso dela? Daí vêm outras perguntas que passam batido, uma hipocrisia, acho que esse é o melhor termo, porque ficam todos dando uma de bom moço. Ninguém fuma maconha, ninguém cheira pó e vamos matar esses demônios que comercializam essas substâncias perigosas. Esse é um discurso construído e o esvaziamento é uma estratégia. Todo discurso sacro, do bem e do mal, é destinado a esvaziar o político. Desde a inquisição, da caça às bruxas é assim.
Se a gente for a fundo mesmo, todo inimigo é imaginário, construído. Ele existe, mas transformar esses narcotraficantes em todo perigo ao Estado-Nação, responsabilizando-os por todas as mazelas daquelas comunidades… A sensação que me dá, pelos programas veiculados, é que agora aquilo ali virou o melhor lugar do mundo. Pelo amor de Deus, será que é a presença desses narcotraficantes – nem vou falar narcotraficantes porque não é a expressão correta – mas será que a presença desses comerciantes de drogas ilícitas é que fazia do Alemão um lugar miserável? Será que agora o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) vai aumentar com a saída deles? São questões que temos que colocar para pensar e sair um pouco dessa dualidade do bem e do mal, do herói e do bandido. O Eduardo Galeano cita num livro que na luta do bem contra o mal é o povo quem entra com os cadáveres. Que, nesse caso, ainda não foram contabilizados porque se fala muito pouco a respeito, parece que não morreu ninguém.
E o pior nem é isso, mas quando você comenta sobre o número de mortes vem sempre um comentário do senso comum como, “Pô, a polícia não matou ninguém”, com uma certa frustração. A construção dessa realidade se dá no ambiente social. A mídia contribui, mas não é só ela. Se formos ver os discursos políticos, é algo impressionante. Agora, o que pode ser colocado é que os políticos se beneficiam e muito nessas situações, porque eles esvaziam o debate real a respeito do Alemão. Todo mundo agora é um pouco partícipe de um suposto sucesso em relação àquela comunidade, que hoje é tudo de bom. Até os moradores passam a acreditar nisso.
Tudo o que tem sido falado pelas autoridades de segurança e pela mídia tem sido no sentido de reforçar o projeto de segurança do governo federal, segurança com cidadania. É algo que tem que se estudar no campo da ciência política, como se consegue unanimidade dentro de um campo como esse, até envolvendo os adversários do governo, os tucanos, que bancam esse projeto de segurança com cidadania. Por que isso é bancado? É um projeto importado, que veio da ONU, já se discutia isso na década de 1970. Talvez por isso não haja um campo de debate político, de oposição a esse modelo.
Fórum – É algo que transcende, nesse caso.
Zaccone – Transcende as políticas locais. Isso que está sendo repercutido, é repercutido da mesma forma pela Globo e pela Record. Em outros momentos, emissoras que estão competindo não fariam isso, mas acontece a naturalização de um fato que não admite questionamento. Os caras são capazes de botar um pastor chutando uma santa, correm esse risco, mas nessa questão das drogas, não. Ela está mais sacralizada que a imagem da santa. Não admitem discutir a política de segurança porque ela está mais sacralizada que a Nossa Senhora.
Acho que o que tem sido feito hoje são debates na internet, tenho visto muito reação e olhar crítico por ali. Há movimentos sociais que estão tentando se organizar, mas a crítica está isolada, e hoje questionar o modelo de segurança é dizer que você é a favor dos bandidos. E ninguém quer ser herege. Os primeiros a serem queimados não foram as bruxas, mas os hereges, que duvidavam do poder das bruxas. Não se podia duvidar delas e hoje duvidar do poder do tráfico de afrontar o Estado, questionar o poder paralelo… Será que eles têm essa organização que possa colocar em risco a existência do Estado brasileiro? Se você questionar isso, já está praticando heresia.
Os moradores do Complexo do Alemão, segundo pesquisas, são favoráveis às ações e isso demonstra que há todo um processo de sujeitamento. Ali já disseram que vão inaugurar um cinema. Provavelmente vão estrear com Tropa de Elite 1 e 2… É um jogo perverso, porque no final das contas estão se negociando direitos e se exigindo uma contrapartida dessa população pobre que é o alinhamento, a sujeição e a delação. O modelo é de arrepiar os cabelos, de dar inveja a muitos governos totalitários. E é colocado como avanço democrático.
fonte: http://www.revistaforum.com.br/