IVAN ZURITA |
Puxadas pelo Brasil, as vendas da Nestlé na América Latina cresceram 5% no primeiro trimestre. Na Europa, principal mercado da empresa, houve retração de 1,3%. |
AS MAIORES EMPRESAS DO mundo sempre olharam para o Brasil com uma certa desconfiança. Turbulência política, instabilidade econômica, renda desigual, tudo isso contribuía para que elas mantivessem durante décadas um volume baixo de investimentos no País. Aquelas que arriscavam colocar seu dinheiro em território brasileiro não esperavam muito da operação regional. O Brasil tinha uma posição secundária e servia apenas como uma espécie de complemento para o portfólio global da empresa. Remessa de lucros e dividendos, que afinal é a razão de qualquer investimento direto realizado no Exterior, não era algo com o qual se podia contar. Nos últimos 10 anos, esse cenário começou a mudar. O desenvolvimento econômico do País e o advento de uma nova massa de consumidores – que subiu de patamar graças ao aumento médio da renda da nação -, finalmente levaram as multinacionais a ganharem uma boa soma de dinheiro por aqui. Mas o País ainda tinha mais a oferecer. Desde que a crise financeira global derrubou as maiores economias do mundo, o que se deu a partir de setembro do ano passado, as multinacionais nunca lucraram tanto no Brasil. Se na Europa, nos Estados Unidos e até na Ásia o cenário é desolador, de crescimento pífio ou prejuízo, as maiores empresas do mundo descobriram no Brasil um jeito de driblar a crise e retirar da operação brasileira os lucros que não conseguem em nenhum outro lugar.
“O País é uma surpresa para o mundo. Os mercados europeu e americano estão saturados” NICOLAS FISCHER | |||||||||
As operações da empresa no Brasil tiveram o melhor resultado entre 150 países. No primeiro trimestre, as vendas cresceram 17,4% na comparação com o mesmo período de 2008. O faturamento global caiu 0,5%.
Os balanços do primeiro trimestre divulgados nas últimas semanas são um retrato fiel do fôlego da economia brasileira. Talvez o caso mais emblemático seja o da Nivea, uma das maiores fabricantes mundiais de cosméticos e produtos de beleza. As vendas da empresa no Brasil cresceram 17,4% nos três primeiros meses do ano. Mundialmente, o faturamento do grupo alemão caiu 0,5%. Na Europa, a performance foi desastrosa (queda de 7,2%). Nem a China, emergente que hoje em dia funciona como parâmetro de comparação com o Brasil, repetiu o desempenho dos brasileiros (os chineses aumentaram suas vendas em 12,2%). Nicolas Fischer, um tímido alemão que está no comando da subsidiária brasileira desde o início de 2006, conseguiu algo impensável até pouco tempo atrás. A Nivea do Brasil teve no começo de 2009 o melhor resultado entre os 150 países em que a empresa atua. Fosse uma corrida de obstáculos, ele teria deixado para trás campeões como os americanos, os alemães, os franceses, os japoneses, os italianos, qualquer um. “O Brasil é uma surpresa para o mundo”, diz Fischer, ainda carregando no sotaque alemão. “O mercado europeu e o americano estão saturados, não vão oferecer muito mais. Para muita gente, a China, a Índia e a Rússia são uma incógnita. O Brasil já é uma certeza.” É óbvio que o crescimento da Nivea no Brasil está ligado também a novas estratégias adotadas recentemente pela empresa, como o lançamento de produtos para a classe C e para o público masculino, para ficar só em dois exemplos. Mas ele reconhece que uma fatia grande do sucesso se deve ao grau de desenvolvimento da economia do Brasil. Os indicadores não mentem. Segundo os últimos dados do IBGE, as empresas voltaram a contratar. A indústria paulista, a mais forte do País, aumentou sua produção nos últimos meses. O dólar, que chegou a bater R$ 2,50 no auge da crise, está próximo da confortável casa dos R$ 2. Se no Exterior as grandes economias projetam quedas brutais no PIB, o governo estima uma alta de pelo menos 1% na riqueza nacional em 2009. Se forem considerados dados de 2008, é covardia comparar o Brasil com as nações mais ricas – os brasileiros têm performance melhor na maioria dos indicadores econômicos. “No Brasil, o potencial de crescimento da classe consumidora, o espaço para ampliação do crédito e o amadurecimento do mercado criam o ambiente perfeito para a expansão das multinacionais”, diz José Reynaldo Sampaio, economista e professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA). Sampaio vai direto ao ponto. “As multinacionais querem novos clientes? O Brasil tem. Estão atrás de custos baixos? O Brasil oferece. Visam retorno rápido e segurança para os investimentos de longo prazo? O Brasil permite tudo isso.” Professor da Unicamp, o economista Julio Gomes de Almeida acrescenta um novo ingrediente. “As multinacionais estão bem no Brasil porque os ajustes feitos em razão da crise não foram suficientes para estrangular as margens de lucro”, afirma.
Um relatório divulgado na semana passada pela Agência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad) confirma o apetite dos estrangeiros pelo Brasil. Segundo o estudo, em 2008 a entrada de investimentos estrangeiros diretos no País cresceu 30% ante 2007. Detalhe: a movimentação de recursos externos caiu 15% no mundo. Na Alemanha, a queda foi de 55,8%. Na Itália, de impressionantes 66,9%. A China, que durante muito tempo foi imbatível na captação de recursos estrangeiros, viu o dinheiro vindo do Exterior aumentar apenas 5%. A francesa Rhodia, uma das maiores indústrias químicas do mundo, vai injetar US$ 50 milhões em suas fábricas no País. A operação brasileira vem ganhando espaço no faturamento global da companhia. No ano passado, o País respondeu por 15% dos 4,8 bilhões de euros de receitas mundiais da Rhodia – é o maior percentual já alcançado pela subsidiária. “Em receita, o Brasil está atrás só da matriz, na França”, diz Marcos De Marchi, presidente da Rhodia na América Latina. “Estamos em mais de 130 países, mas o mercado brasileiro é prioridade. Ainda mais neste momento em que o mundo encolhe.” A percepção de que o País vem consolidando uma posição de destaque no tabuleiro dos investimentos está próxima do consenso. Para o presidente da multinacional alemã de automação comercial Festo, Waldomiro Modena, a posição de “relativo conforto” do País tem seduzido o mundo e, no caso do setor em que ele atua, está à frente até da China, a grande estrela mundial. “Do ponto de vista tecnológico, não perdemos nada para as nações ricas. Isso é fruto de grandes investimentos e nos deixa em melhores condições de competir”, afirma o executivo. O vicepresidente da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), Alfried Plogger, prevê uma nova onda de investimentos no Brasil, assim que a crise tiver sido melhor digerida pelas grandes economias. Segundo ele, o setor industrial reagirá nos próximos meses para repor os estoques que foram “queimados” no início do ano e para suprir o consumo, que não recuou como se imaginava. “Além daqueles recursos que estão chegando, há muitos investimentos em andamento desde o ano passado.” Plogger defende a ideia de o Brasil se tornou uma ilha no mundo. “Estamos em situação diferenciada”, diz. “Os países ricos enfrentam retração e os vizinhos, Argentina e Peru, estão no sufoco.”
É notável e surpreendentemente veloz a transformação do papel que as multinacionais desempenham no Brasil. Nos anos 80, pode-se dizer que elas davam as costas para o País. Naquela década, apenas metade das 500 maiores empresas do mundo tinham algum tipo de atuação por aqui. Atualmente, 430 das 500 principais empresas globais possuem um braço brasileiro. O interessante é que as operações nacionais não são coadjuvantes – longe disso. A subsidiária brasileira da suíça Nestlé é a segunda em volume de produção e a quarta em faturamento. Até 2012, a Nestlé planeja dobrar de tamanho por aqui. “Pela minha experiência, posso dizer que o Brasil é o País que possui maior expertise no gerenciamento de incertezas”, diz o presidente Ivan Zurita. “O Brasil se tornou um dos poucos lugares do mundo onde as empresas, independentemente de seu segmento, podem definir o tamanho que desejam ter e quanto pretendem crescer.” Mundialmente, a região com melhores resultados apresentados no primeiro trimestre do ano foi a Zona das Américas, que inclui tanto os países do Norte quantos os do Sul do continente. Nessa área, que inclui o Brasil e também os Estados Unidos, as vendas dos primeiros três meses do ano somaram US$ 6,4 bilhões, registrando alta real de 2% em relação ao mesmo período de 2008, quando o faturamento foi de US$ 6,07 bilhões. Na América Latina, segundo o relatório de resultados, houve crescimento de 5% nos negócios. Na Europa, houve retração de 1,3%.
Note que as empresas que vêm apresentando resultados expressivos no Brasil são gigantes que lideram os setores em que atuam e que possuem marcas fortes e estabelecidas globalmente – o que, aliás, só reforça a relevância recém-conquistada pelo País. Há alguns dias, a Coca-Cola apresentou com orgulho a performance da operação brasileira nos três primeiros meses de 2009. A empresa comemorou vinte trimestres consecutivos de crescimento em volume de vendas no Brasil. Nos três primeiros meses de 2009, as receitas aumentaram 4% no País, o dobro da média mundial. A nova safra de consumidores brasileiros que viu sua renda dobrar em 20 anos passou a comprar mais refrigerantes da marca, em vez de adquirir produtos menos conhecidos. O fenômeno da nova classe C – uma legião de 20 milhões de potenciais consumidores surgidos nos últimos cinco anos – turbinou os resultados de inúmeras multinacionais que atuam no Brasil. A dinamarquesa Lego, uma das maiores e mais tradicionais fabricantes de brinquedos do mundo, diminuiu o preço de seus artigos justamente para chegar a esse público. A decisão revelou-se acertada. No Brasil, as vendas da companhia crescem a uma taxa média de 15% ao ano, o dobro da média mundial. Isso se deve, sobretudo, aos novos nichos explorados pela Lego – é o caso das pessoas que migraram recentemente da classe D para a C. “Desde que chegou ao Brasil, em 1986, a Lego vive agora seu melhor momento no País”, diz Robério Esteves, responsável pela operação brasileira. Algo parecido se deu com a Mapfre, uma das maiores seguradoras do mundo. A partir de setembro, quando a crise explodiu, a empresa começou a lançar uma linha de produtos populares, por acreditar que esses consumidores seriam menos atingidos. O resultado veio rápido. “Nosso faturamento cresceu 22% nos primeiros quatro meses do ano”, diz o presidente Antonio Cássio dos Santos. Isso, vale lembrar, em tempos de crise. Desde o ano passado, a operação brasileira da Mapfre é destaque. Uma história relatada pelo presidente da chinesa Huawei no Brasil, Marcelo Motta, demonstra o que as matrizes esperam do Brasil. No final do ano passado, ele recebeu da matriz na China duas informações importantes. Primeiro, que a companhia – uma gigante global do setor de tecnologia – havia batido todas as metas de 2008. O faturamento mundial saltou de US$ 16 bilhões, em 2007, para US$ 23,3 bilhões no ano passado, uma disparada de 45%. A segunda parte do documento referia-se ao mercado brasileiro. Por determinação do comando chinês, a nova meta de crescimento para o Brasil era de 30% em 2009. Naquele momento, em um dos períodos mais críticos da crise financeira internacional, falar em desempenho positivo era algo que beirava o absurdo. Motta leu aquele texto e não ficou nem um pouco preocupado. Afinal, a Huawei havia faturado US$ 1 bilhão no País em 2008, resultado 67% maior do que em 2007. “Vamos mergulhar em três segmentos em que ainda não atuamos no País, entre eles o de aparelhos celulares”, diz Motta. “Por isso, acredito que a meta da matriz será superada.” Em outras palavras: o executivo aposta que a empresa vai crescer mais de 30% em um ano em que todos contabilizam perdas lá fora. O Brasil virou mesmo o paraíso das multinacionais.
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