Na semana em que o novo secretário de Direitos Humanos do Estado de Sergipe toma posse, o mesmo Governo, através da Polícia Militar, retira das ruas, indiscriminadamente e com violência aparente, guardadores de veículos, os flanelinhas. De um lado, palavras ao vento sobre garantias aos direitos humanos. Do outro, ação concreta de Estado que criminaliza a pobreza. Os dois atos aplaudidos pela maioria da sociedade, sendo que este último com maior entusiasmo, apoio e gozo.
Alegando-se que alguns guardadores de veículos estavam extorquindo motoristas e ameaçando danificar o patrimônio (veículos), a Polícia Militar montou um mega esquema de viaturas e policiais fortemente armados (fuzis, metralhadoras, etc) e saiu pelas ruas do bairro São José, de classe média alta, catando flanelinhas que encontrassem pela frente. Estava na rua, era detido imediatamente. Em minutos, já eram 15 em cima de caminhonetes abertas para todos aplaudir. Com armas apontadas e eles com as mãos na cabeça, eram obrigados a subir na viatura, sem qualquer explicação. Todos mandados para a delegacia. Cenas fantásticas para o deleite da mídia.
Claro que entre essas pessoas pode se encontrar alguém que tenha até feito algum tipo de ameaça. Pode até ser, mas onde está a inteligência da polícia para, na forma da lei, investigar, fazer o flagrante, buscar um mandado judicial? Ou não é assim que se faz com homens de bens?
Esta ação suscita perguntas e constatações. Qual o flagrante ali verificado para que aquelas pessoas fossem detidas pela polícia? Alguma ordem judicial? Quais os acusados, seus nomes? Acusados de quê? Quem são as vítimas? Alegou ainda o Governo que flanelinha é profissão regulamentada e para isso tem que ter documentos, tudo registrado em cartório e no Ministério do Trabalho. Tem que pagar taxas e impostos. Tem que ter ficha limpa. É a lei. Lei? Curioso, não há empresário que vive de extorsão e cobranças abusivas? Que frauda documentos? Que não paga impostos? Quem tem ficha muito suja? Ah, a lei!
Mas há quantos anos esses guardadores de veículos estão nas ruas? E o mais importante: o porquê eles estão nas ruas há tanto tempo? Hobby? Profissão? As perguntas são inúmeras e as constatações poucas. Os pobres, principalmente os miseráveis, são jogados pela sociedade na invisibilidade. É lá que ficam mendigos, pedintes, drogados, moradores de rua, pobres, todos taxados de criminosos. Ficam contidos na invisibilidade sob o controle do poder de polícia, da força do Estado. Quando alguns ameaçam ultrapassar essa fronteira, principalmente tocando na essência da sociedade capitalista, que é a propriedade (patrimônio), são devidamente enquadrados como bandidos.
A criminalização da pobreza não ocorre apenas com algumas ações policiais. É uma atividade de Estado. Criminaliza-se quando o poder destrói barracos e entulha gente em galpões fechados; quando expulsa cada vez mais para longe da cidade os pobres que vão morar em barracos oficiais chamados de casas; quando se constrói conjuntos sem a menor estrutura de saneamento, escola, postos de saúde, praças; quando recolhe moradores de rua e os levam para outros estados; quando se mata, queima, persegue, some; quando se proíbe a circulação de pobres em shopping, restaurantes, aeroportos, supermercados. Se aparecer um mal vestido é monitorado e intimidado. Homens de bens reclamam. Afinal de contas a cidade precisa estar limpa e sem incômodos. Imagine, encostar em meu carro novinho?.
Quão hipócrita é nossa sociedade. Criminaliza o pobre, tem-se horror dessa gente, pavor de sua existência. Pela aparência, o preconceito estabelecido é de bandido. É assim que se ensina em muitas escolas. O valor das pessoas é medido pelo que se tem e quem não tem está fora do jogo social. Ao mesmo tempo, essa mesma sociedade apoia, festeja, enaltece e elege alguns homens de bens, mesmo que pratiquem a extorsão contra o Estado, que metam mãos e pés nos cofres públicos, que não cumpram leis, que não pagam impostos, produzindo a miséria de muitos. Se um desses homens é descoberto, o crime muda de nome e há todo um aparato do Estado para protegê-lo. Imagine alguns deles sendo recolhidos pela PM e colocados em caminhonetes abertas ao público? Jamais
Luiz Eduardo Oliva, novo secretário de Direitos Humanos e que começa a trabalhar oficialmente amanhã, tem muito a fazer. Não tem estrutura, orçamento e nem pessoal. Sua boa vontade e capacidade esbarram numa constituição de Estado que produz injustiças, que amplia o conceito dos homens de bens, que criminaliza pobres. Mas há esperanças. Tanto Oliva, quanto o governador Marcelo Déda têm sensibilidade e plena consciência do papel histórico que desempenham nesse momento onde estão. O segundo Governo Déda começou faz seis meses. Iniciou bem com uma secretaria própria de Direitos Humanos, mas vai ter que agir de forma transversal em toda estrutura de Governo para que não agrave a criminalização da pobreza, como exige o capital. Ainda há tempo!
* Foi repórter de jornais e revista. Trabalhou como assessor do Sintese, da deputada Ana Lúcia e do MPF/SE. Foi diretor de imprensa e secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju. É ex-presidente e hoje dirigente do Sindicato dos Jornalistas, da ASI e da CUT/SE. É jornalista concursado no INSS